quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Luz del Fuego


 ***
Os anos 50 haviam começado sua peregrinação pela cidade encravada no coração do que os primeiro colonizadores chamaram mar de Xaráes. De segunda a sexta, o comércio e as repartições exibiam postiça urbanidade entremeada ao passo lento das mulas que sustentavam vendedores e cacarecos, dos bêbados e malucos recostados a sombra dos flamboyants e das prostitutas que saíam das entranhas dos becos e vielas para fazer compras nas bem comportadas e retilíneas ruas da cidade. O sábado era o dia dedicado ao vício. Nos bairros pobres e miseráveis improvisavam-se lutas de boxe a partir das transmissões das disputas por títulos e cinturões nacionais e mundiais, ao vivo, retransmitido pela rádio local, dos poderosos microfones da Rádio Nacional. Foi pelas ondas do rádio que Augusto Camalote soube da apresentação única de Luz del Fuego no teatro municipal de Corumbá. O bispo prometeu excomungar toda a assistência da infame apresentação. O povo deu de ombros. O teatro estava lotado. Augusto embarcara na chalana (um dia rio abaixo). Levou uma improvisada matula, o terno, calça, cinto e sapatos pretos e uma camisa branca que usara apenas uma vez, no casamento de Epaminondas Coelho, filho de Seu Leônidas, proprietário da Nossa Senhora de Fátima, no pantanal da Nhecolândia. Esqueceu-se da gravata (na verdade, a perdeu no improviso da vida no mato, usada para atar sua tralha). Ao contrário de seus colegas de peonada, não casara. Mantivera-se fiel às meninas de Comadre Afonsina nos confins da rua Delamare, próximo à antiga Fortaleza. Delas, guardava especial dengo de Gertrudes, uma cearense de pele bronzeada, olhos negros e penetrantes, cabelos cacheados e sedosos que deslizavam por seus ombros macios e frescos. Amaram-se entre cheias e vazantes. Até que a tísica comeu a saúde de Gertrudes que simplesmente resolveu ir a pé à Bolívia e nunca mais apareceu. O pantaneiro secou por dentro e não teve mais tempo para nenhuma das primas de Afonsina.
***
A dança de Luz del Fuego enfeitiçara o pantaneiro. As serpentes eram como suas mãos a deslizar sobre o corpo da bailarina. Luz seria Gertrudes renascida? Sua garganta secou, mordeu os lábios, a luz era fraca no interior do teatro. A dançarina flanava pelo palco, contorcia-se, provocava, atava-se aos olhos da assistência com o magnetismo de um bugio. Ao fim do espetáculo, Augusto enfiou-se na multidão de fãs, repórteres da imprensa local e da capital e curiosos que se acercaram de Luz. Do lado de fora, um pequeno piquete organizado pelas Mãezinhas Zelosas da Cristandade vociferava contra o espetáculo. Do lado de dentro, os cumprimentos entusiasmados, os elogios, os aplausos e apupos à beleza nua de Luz abafavam a ruidosa manifestação. Augusto se aproximou de Luz e segurou suas mãos. Transportaram-se ao Pantanal.
***
Augusto Camalote foi à estação ferroviária. Chegou cansado e combalido, mas não a tempo de pegar o primeiro trem que partiu, de manhazinha, para Campo Grande. Nos trilhos da ferrovia, o trem carregou Luz Del Fuego e sua companhia. O funcionário do guichê, de sobrancelhas largas e pontiagudas, respondeu secamente: - Foram hoje cedo, ela com todo seu bando! O pantaneiro sentiu uma emoção triste se formar dentro do estômago: era como um animal roendo-lhe as tripas e deixando em seu lugar um vazio incomensurável. Desgostoso da vida, com os ombros caídos, se arrastando pelas ruas largas da cidade matutina, Augusto montado num vento chegou as águas calmas e vagarosas do Rio Paraguai, no porto. De lá avistou a ilha onde ele e Luz de Fuego passaram a noite, completamente bêbados e nus, dançando ao som dos pássaros e sob os olhares brilhantes das capivaras e das sucuris. Jogou-se nas águas e submergiu para nunca mais ser visto. Os pescadores contam que ao mergulhar encontrou-se com a sucuri, que com ciúmes da amizade entre Luz e Augusto, enrolou-o em seu abraço mortal e depois o devorou. Se sentido culpada pelo assassinato do pobre pantaneiro, a sucuri começou a chorar, chorar e chorar de maneira que ficou com soluço e, a cada soluço que dava, regurgitou um ramo de camalote. De ramo e ramo que submergia, se formou um arco de camalotes que abraçou a pequena ilha onde nas noites de lua cheia se abrem exibindo a beleza de suas flores. Quando a ilha é banhada pelos primeiros raios de lua , o perfume das flores de camalote inunda o pantanal e convoca todos os bichos da mata para ver o reencontro de Augusto e Luz de Fuego que dançam, nus, longe do tempo e da mentira, no espaço mítico das histórias contadas pelo povo.

*Este texto se baseia em um fato real: a apresentação da dançaria Luz del Fuego (1917-1967) na cidade de Corumbá, em 1956. A informação consta no livro do historiador Valmir Batista Correia (Corumbá: Terra de luta e de sonhos, 2006). A apresentação de Luz em Corumbá foi objeto de enorme polêmica com ameaças, por parte do clero, de excomungar os que fossem assistir ao espetáculo. Sobre Luz Del Fuego acessar:
http://www.netsaber.com.br/biografias/ver_biografia_c_1433.html

sábado, 22 de janeiro de 2011

Ynaê


O mar sorriu em Ynaê
Mainha te espera a contar os fios das horas
Venha com o mar, Yanê
E me abrace
Vem conhecer a cidade
Que é dos nossos ancestrais
Vem linda baiana,
Conhecer sua cidade africana
Cercada por suas águas
Marcada de amor, luta e ashé
Tão bela quanto Daomé

Ynaê, mainha te espera
Para te abraçar
Vem com o mar, Ynaê 
Com a sabedoria de Oxalá

Eterna Dandara

Dandara morreu recostada com a cabeça numa pedra
[a contar estrelas no céu
e seus dedos ficaram grossos num sem fim de [verrugas...
Não acredito em sua morte,
Dandara não morreria jamais sem antes vir me ver
Ainda escuto, ao longe, seu corpo a atritar-se nas [pedras redondas
Que se juntam na beira dos rios...
Ouço sua voz narrando histórias de  guerreiros que [abandonaram
Suas famílias para conquistar o Mar do Norte...
E desenho em minha mente, com rusticidade tamanha,
A elasticidade do seu sorriso
A brevidade de sua alegria...

Dandara, que carreguem as formigas o seu corpo
E te tragam junto a mim
E que arrastem junto consigo
A lama, o graveto, as folhas verdes e maduras
E contornem a sua boca
Guarnecendo-a e defendendo-a até a morte
Se alguém quiser violá-la...
E tragam incensos e néctares
E frutas e pedras
Para deixar em seu leito
Pela eternidade...

Encontro com Dandara

vi Dandara estes dias...
vestia-se com um manto mui negro
que era a noite
seu echarpé era uma feixe de luz lunar
que se enrolava
por seu pescoço reluzente
as estrelas formavam uma diadema radiante
coroando seus cabelos negros e crespos
com cheiro de dama da noite
do seu coração vazava uma linda cachoeira
de água límpida
para matar minha sede
untei os meus olhos com o gosto orvalhado
de auroras que o seu sorriso me sugeriu
meus olhos viram o impreciso...

Dandara - I

 
a manhã repercute suas impressões em minha tez negra
a poeira fina cobre a réstia de luz molenga que atravessa
a brecha da porta
ergo-me com a lança em punho e vou caçar:
demoro semanas mato a dentro e não trago nada que valha
um banquete
impaciente, Dandara, se acerca de mim com seus olhos famintos de comida
e amor 
promete me abandonar

“— Não sei viver sem você, Dandara! Espere que algum cateto há de aparecer.”

passam-se mais dias: cateto não aparece, Dandara desce o rio,
perco o gosto que dela guardava na boca
e desapareço, para sempre, mato adentro
a procura de um esteio para a alma.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Obatalá (Oxalá)

"Obatalá te quiero tanto"

Camaleão Caolho

Azimute de mamute
Globo oscular
Camaleão Caolho
Néctar de Gibraltar!
Hálito de rio, mel de cobre
Camaleão por onde corre
O mato se curva
Tem pacto com o demo
Amigo de viciadas prostitutas
Erguidas das catatumbas
É frescor de azedume
Com descolor de Fanta Uva
Camaleão é Touro Sentado
É Samora, é Hai-Kai
Quando ele caminha
De algum lugar ele sai
Pustula reluzente entre dardos envenenados
Aldeia de convés virado
Coração de frangos empalados
Camaleão Caolho
Vê tudo errado
Vê pelo rêgo
Com o olho furado
E o olho que enxerga 
Sempre está enganado

Horas

Horas
(Des) horas
Hora de trabalhar
Travaram as horas
Horas trabalham
Na forca dos otários
Um rato morto no almoço
Flotam os couros enegrecidos
Pela força das horas
Magros monturos de morte
A sorte nunca vai chegar
Do sul ou do norte
A fronte a desmanchar
Horas a trabalhar